Resumo: Propsito do Trabalho: Estudos sobre a produo cientfica brasileira em contabilidade tm identificado uma baixa diversidade temtica, metodolgica e epistemolgica (Cardoso, Mendona Neto, Riccio, & Sakata, 2003; Cardoso, Oyadomari, & Mendona Neto, 2007; Leite Filho, 2008; Mendona Neto, Riccio, & Sakata, 2009; Thephilo & Iudcibus, 2005). Porm, a nfase de tais estudos recai sobre indicadores bibliomtricos e, subsidiariamente, caractersticas epistemolgicas da produo analisada, pouco avanando na compreenso das condies sociais que levam a esta falta de diversidade.
Neste ensaio, adotando o referencial sociolgico de Pierre Bourdieu, proponho-me a interpretar a evoluo do campo cientfico na contabilidade brasileira, desde sua origem at os dias atuais. Meu principal argumento de que a falta de diversidade da pesquisa contbil brasileira decorre da sua baixa autonomia em relao ao campo profissional.
Para elucidar os argumentos expostos, proponho algumas comparaes com a rea de administrao, que apesar da semelhana temtica e origem comum com a contabilidade nas escolas de comrcio, marcada por acirrados debates epistemolgicos e comporta uma comunidade de pesquisadores crticos cujas origens podem ser traadas, no mnimo, dcada de 1970.
Base da plataforma terica: Neste ensaio adoto o referencial sociolgico de Pierre Bourdieu, com os conceitos de campo, capital e habitus, e suas consideraes sobre as especificidades do campo cientfico. Para ele,
Em termos analticos, um campo pode ser descrito como uma rede, ou uma configurao, de relaes objetivas entre posies. Essas posies so definidas objetivamente, em sua existncia e nas determinaes que impem sobre seus ocupantes, agentes ou instituies, pela sua situao (situs) presente e potencial na estrutura da distribuio de espcies de poder (ou capital) cuja posse comanda acesso aos ganhos especficos em disputa no campo, bem como por sua relao objetiva com outras posies (dominao, subordinao, homologia, etc.) (Bourdieu & Wacquant, 1992, p. 97, traduo nossa).
O acesso ao campo garantido aos indivduos que possuam uma configurao determinada de propriedades, as quais Bourdieu define como capital. Ele sustenta que
Dependendo do campo em que funcione, e dos custos associados s transformaes mais ou menos dispendiosas que so pr-condio para sua eficcia no campo em questo, o capital pode se apresentar sob trs formas fundamentais: como capital econmico, que imediata e diretamente conversvel em dinheiro e pode ser institucionalizado na forma de direitos de propriedade; como capital cultural, que conversvel, sob certas condies, em capital econmico e pode ser institucionalizado na forma de credenciais educacionais; e como capital social, construdo atravs de obrigaes sociais (conexes), que conversvel, sob certas condies, em capital econmico e pode ser institucionalizado na forma de ttulos de nobreza. (Bourdieu, 2002, p. 282, traduo nossa).
J o habitus, ao explicar como as regras do campo so apropriadas por agentes dotados de diferentes valncias de capital, prov uma ponte terica entre os conceitos de campo e capital. Sendo um produto da histria,
ele assegura a presena ativa das experincias passadas que, depositadas em cada organismo sob a forma de esquemas de percepo, de pensamento e de ao, tendem, mais seguramente do que todas as regras formais e todas as normas explcitas, a garantir a conformidade das prticas e sua constncia atravs do tempo. (Bourdieu, 1980, p. 91, traduo nossa).
Bourdieu (1976) postula que a verdade cientfica resulta de condies sociais de produo particulares, ou seja, da estrutura e do funcionamento do campo cientfico. Para ele,
O universo puro da cincia mais pura um campo social como qualquer outro, com suas relaes de fora e seus monoplios, suas lutas e suas estratgias, seus interesses e seus ganhos, mas onde todas estas caractersticas se revestem de formas especficas. (p. 89, traduo nossa).
A disputa que se d no campo cientfico pelo monoplio da autoridade cientfica, espcie particular de capital social entendida como a capacidade de falar e agir legitimamente em matria de cincia. E a principal caracterstica deste campo o fato de que os produtores tendem, tanto mais quanto maior for a autonomia do campo, a no ter outros possveis clientes que no seus prprios concorrentes. Assim, num campo cientfico altamente autnomo, um indivduo s poder obter reconhecimento do valor de seus produtos, na forma de reputao, prestgio, autoridade, etc., a partir do julgamento de seus pares, que justamente por serem seus concorrentes sero pouco propensos a conceder tais benefcios seno aps discusses e exames acurados.
Mtodo de investigao: Minhas anlises tm por base principal a literatura sobre a histria da contabilidade no Brasil, e subsidiariamente, reflexes decorrentes de minha recente trajetria neste campo.
A partir da Revoluo de 1930, com o advento da Era Vargas, teve incio um perodo que pode ser descrito como de corporatismo estatal, caracterizado por um sistema de representao de interesses organizados em categorias diferenciadas, singulares, no-competitivas e ordenadas funcionalmente, em que o Estado oferece reconhecimento e liberdade representacional s categorias, em troca da tutela sobre os processos de seleo de lideranas e articulao de demandas (Rodrigues, Schmidt, Santos, & Fonseca, 2011). Assim, a partir de 1930 houve uma proliferao de associaes profissionais por diversos estados brasileiros, como Pernambuco, Mato Grosso, Minas Gerais e Rio Grande do Sul (Peleias & Bacci, 2004). Segundo Agrizzi e Sian (2015), as limitadas possibilidades de educao e treinamento comercial eram motivos de insatisfao dentre os integrantes das primeiras associaes profissionais, e o ensino de contabilidade ocupou papel de destaque na consecuo do projeto de profissionalizao.
Em 1946 foram criados o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Contabilidade, consolidando o projeto profissional da categoria ao lhe conferir garantia de unidade, reconhecimento de sua jurisdio, da necessidade de obteno de registro junto categoria para o exerccio da profisso, e ampliando seu monoplio (Mendona Neto et al., 2012). Neste mesmo ano de 1946, diversas universidades brasileiras criaram cursos de contabilidade (Rodrigues et al., 2011).
Assim, o ingresso da contabilidade no ambiente acadmico brasileiro se deu por conta dos esforos levados a cabo por lderes da profisso, que foram tambm os responsveis por implementar tais cursos dentro das universidades. Desta maneira, j em sua origem os cursos de contabilidade estavam subordinados a interesses do campo profissional, no s como parte da estratgia de diferenciao e conquista de status perante a sociedade como um todo, mas tambm para a acumulao de capital cultural a ser mobilizado nos conflitos existentes no mbito interno da profisso.
Resultados, concluses e suas implicaes: Desde sua origem, os cursos superiores de contabilidade estavam subordinados a interesses do campo profissional. A profisso contbil j havia garantido legalmente seu monoplio quando a disciplina ingressou no meio acadmico brasileiro, e a principal funo legada academia aparentemente foi a de controle da qualificao para acesso profisso, j que o acmulo de capital cultural atravs do meio acadmico no foi uma estratgia perseguida com intensidade: no de 1978 foi inaugurado o primeiro curso de doutorado em contabilidade, na FEA/USP, que permaneceu sendo o nico deste nvel no pas at 2006, quando havia apenas 15 cursos de mestrado em funcionamento, dos quais 12 foram criados a partir de 1998 (Peleias et al., 2007).
Uma disputa histrica no campo da contabilidade brasileira se deu entre os adeptos da escola italiana e os da escola norte-americana, adotada e difundida pela FEA/USP desde o final dos anos 1950 (Rodrigues et al., 2012). Nesta disputa, a aposta na ps-graduao como forma de acmulo de capital cultural foi uma das estratgias adotadas pelo segmento norte-americano, liderado pela FEA/USP. Mas tambm este segmento mantinha vnculos estreitos com o campo profissional, com lideranas ocupando cargos em rgos reguladores como o Banco Central do Brasil (BCB) e a Comisso de Valores Mobilirios (CVM), participando ativamente da elaborao de normas contbeis, prestando consultorias e integrando conselhos de companhias privadas.
Thephilo e Iudcibus (2005), em anlise da produo cientfica brasileira em contabilidade, afirmam que para o perodo de 1999 a 2003 o tipo de trabalho mais freqente . terico-emprico, apresenta postura terica positiva e realiza investigaes em superfcie, baseadas em teorias existentes e aceitas pela comunidade cientfica (p. 170). Este perodo coincide com o incio de uma expanso acelerada da ps-graduao stricto sensu em contabilidade no Brasil, bem como a uma mudana de paradigma na pesquisa contbil, com declnio de abordagens normativas e predomnio de abordagens positivas, identificada tambm por Cardoso et al. (2007) e Borges, Rodrigues, Silva e Santana (2011), dentre outros.
Em conjunto, a expanso da ps-graduao e a virada positivista na pesquisa contbil brasileira sugerem um processo de maior autonomizao do campo cientfico em relao prtica profissional. A virada positivista, embora indique uma ruptura, parece ter decorrido no de estratgias de subverso por parte de postulantes ao acesso, mas sim de estratgias de conservao levadas a cabo pelos dominantes do campo, devido a presses externas. A ascenso do positivismo cumpriu o papel de cientificizar os discursos do campo, permitindo o acesso de seus produtos a canais de divulgao j estabelecidos em outras disciplinas e a emulao destes canais nos peridicos da prpria rea, contribuindo para preserv-la.
Com sua reificao do status quo e alegao de objetividade, o positivismo permitiu que a academia contbil brasileira continuasse, agora sob a forma de coeficientes e nveis de significncia, a reafirmar interesses do campo profissional: diversos estudos de value relevance com o objetivo de provar a importncia da contabilidade; problemas de pesquisa que tomam apenas o investidor e o gestor, ou quando muito o credor, como parmetro de interesses; e insistncia em temas ligados ao mercado de capitais, com o qual o segmento acadmico sempre manteve vnculos estreitos, a despeito de sua baixa relevncia como fonte de financiamento e alternativa de investimento na economia brasileira.
Assim, o referencial adotado, a reviso da literatura e as reflexes oriundas de minhas vivncias no campo apontam para a falta de autonomia em relao aos interesses da profisso como o maior empecilho para a ampliao da variedade temtica, metodolgica e epistemolgica da pesquisa contbil feita no Brasil. Em face aos constantes apelos por uma maior aproximao entre academia e prtica, tal entendimento serve de alerta s consequncias que uma postura subserviente a interesses profissionais pode acarretar pesquisa contbil.
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Bourdieu, P. (2002). The Forms of Capital. In N. W. Biggart (Ed.), Readings in Economic Sociology (pp. 280291). Malden: Blackwell.
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Peleias, I. R., Silva, G. P. da, Segreti, J. B., & Chiorotto, A. R. (2007). Evoluo do ensino da contabilidade no Brasil: uma anlise histrica. Revista Contabilidade & Finanas, 18(spe), 1932. doi: 10.1590/S1519-70772007000300003
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Rodrigues, L. L., Schmidt, P., Santos, J. L. dos, & Fonseca, P. C. D. (2011). A research note on accounting in Brazil in the context of political, economic and social transformations, 1860-1964. Accounting History, 16(1), 111123. doi: 10.1177/1032373210373799
Thephilo, C. R., & Iudcibus, S. de. (2005). Uma Anlise Crtico-Epistemolgica da Produo Cientfica em Contabilidade no Brasil. Contabilidade, Gesto e Governana, 8(2), 147175.
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